Filme O Pagador de Promessas - Preconceito e Intolerância Religiosa
O Pagador de Promessas - Preconceito e Intolerância Religiosa
Em nome de Yansan e Santa Bárbara na Festa do dia 4 de dezembro.
O pagador de promessas é um filme brasileiro de 1962, do gênero drama, escrito e dirigido por Anselmo Duarte.
Zé do Burro é um homem humilde que enfrenta a intransigência da Igreja ao tentar cumprir a promessa feita em um Terreiro de Candomblé de carregar uma pesada cruz por um longo percurso. Zé do Burro é o dono de um pequeno pedaço de terra no Nordeste do Brasil. Seu melhor amigo é um burro. Quando este adoece, Zé faz uma promessa à uma Mãe-de-Santo do Candomblé: se seu burro se recuperar, promete dividir sua terra igualmente entre os mais pobres e carregará uma cruz desde sua terra até a Igreja de Santa Bárbara em Salvador, onde a oferecerá ao padre local. Assim que seu burro se recupera, Zé dá início à sua jornada.
O filme se inicia com Zé, seguido fielmente pela esposa Rosa, chegando à catedral de madrugada. O padre local recusa a cruz de Zé após ouvir dele a razão pela qual a carregou e as circunstâncias "pagãs" em que a promessa foi feita. Todos em Salvador tentam se aproveitar do inocente e ingênuo Zé. Os praticantes de Candomblé querem usá-lo como líder contra a discriminação que sofrem da Igreja Católica, os jornais sensacionalistas transformam sua promessa de dar a terra aos pobres em grito pela reforma agrária. A polícia é chamada para prevenir a entrada de Zé na Igreja, e ele acaba assassinado em um confronto violento entre policiais e manifestantes a seu favor. Na última cena do filme, os manifestantes colocam o corpo morto de Zé em cima da cruz e entram à força na Catedral.
Alguns dos atores que participaram do filme: Leonardo Villar (Zé do Burro), Glória Menezes (Rosa), Dionísio Azevedo (padre Olavo), entre outros. Foi indicado na categoria de Melhor Filme Estrangeiro ao Oscar 1963 (EUA), ganhou a Palma de Ouro no Festival de Cannes 1962 (França), ganhou o Prêmio Especial do Júri do Festival de Cartagena 1962 (Colômbia), ganhou o Prêmio Golden Gate nas categorias de Melhor Filme e Melhor Trilha Sonora no San Francisco International Film Festival 1962 (EUA)
Análise
O Pagador de Promessas expressa a crítica à sociedade urbana e de massas capitalista. O homem, no sistema capitalista, é um ser que luta contra uma engrenagem social que promove a sua desintegração, ao mesmo tempo que aparenta e declara agir em defesa de sua liberdade individual. Para adaptar-se a essa engrenagem, o indivíduo concede levianamente, ou abdica por completo de si mesmo. O Pagador de Promessas é a história de um homem que não quis conceder – e foi destruído. Seu tema central é, assim, o mito da liberdade capitalista. Baseado no princípio da liberdade de escolha, a sociedade elitista não fornece ao indivíduo os meios necessários ao exercício dessa liberdade, tornando-a, portanto, ilusória.
O enfoque principal do autor não é, portanto, a questão religiosa. Não obstante, as personagens, diálogos e contexto sócio-político, também permitem a reflexão nesta perspectiva. O próprio autor admite que “há também a intolerância, o sectarismo, o dogmatismo, que fazem com que vejamos inimigos naqueles que, de fato estão do nosso lado”. Sua preocupação não se restringe à intolerância religiosa, como podemos deduzir a partir do confronto entre o Padre Olavo e Zé-do-Burro, mas abarca a intolerância universal. Os preconceitos que produzem a intolerância se nutrem de diversos alimentos. A intolerância tem várias faces e se faz presente em qualquer época e território onde pise o ser humano. A história da humanidade é também a história da sua incapacidade de conviver com o outro, com o diferente.
Padre Olavo veste batina, podia vestir farda ou toga. É padre, podia ser dono de um truste. E Zé-do-Burro, crente do interior da Bahia, podia ter nascido em qualquer parte do mundo, muito embora o sincretismo religioso e o atraso social, que provocam o conflito ético, sejam problemas locais, fazem parte de uma realidade brasileira. Zé-do-Burro é trucidado não pela Igreja, mas por toda uma organização social, na qual somente o povo das ruas se confraterniza e a seu lado se coloca, inicialmente por instinto e finalmente pela conscientização produzida pelo impacto emocional de sua morte. A invasão final do templo tem nítido sentido de vitória popular e destruição de uma engrenagem da qual, é verdade, a Igreja, como instituição, faz parte.
Porém, da mesma forma que a engrenagem mostra fissuras, representada pela reação de solidariedade ao Zé-do-Burro, os indivíduos que representam a instituição eclesiástica, em especial o Padre Olavo, também poderiam ter atitude mais flexível diante do pagador da promessa. Em outras palavras, os indivíduos agem diante da estrutura (engrenagem) num campo limitado de ação, é verdade, mas como possibilidades. Se o indivíduo faz a história dentro de determinadas condições, estas podem ser transformadas por ele. O contrário é imaginarmos uma situação em que os indivíduos não têm escolha a não ser se submeter.
O Candomblé mencionado no contexto de O Pagador de Promessas se constituiu na Bahia no século XIX, a partir das tradições de povos Yorubás, ou Nagôs, com influências de costumes trazidos por grupos Fons, aqui denominados Jejes, e residualmente, por grupos africanos minoritários. O Candomblé se constitui inicialmente como uma religião de resistência dos escravos e seus descendentes, numa sociedade de domínio branco e católico. Era através do Candomblé, como das demais religiões de origens africanas, que os negros mantinham e renovavam seus vínculos com as tradições culturais da África. O negro podia contar com um mundo negro, fonte de uma África simbólica, mantido vivo pela vida religiosa dos Terreiros, como meio de resistência ao mundo branco, que era o mundo do trabalho, do sofrimento, da escravidão, da miséria.
Porém, os negros não podiam simplesmente fazer de conta que existia apenas o mundo resguardado pela tradição e religião. Sua existência exigia se fazer presente também no mundo dos brancos, interagindo com estes e sua religião. Esta é a fonte do sincretismo religioso. O autor Roger Bastide mostrou como a habilidade do negro, durante o período colonial, de viver em dois diferentes mundos ao mesmo tempo era importante para evitar tensões e resolver conflitos difíceis de suportar sob a condição escrava. Logo, o mesmo negro que reconstruiu a África nos Candomblés reconheceu a necessidade de ser, sentir-se e mostrar-se brasileiro, como única possibilidade de sobrevivência, e percebeu que para ser brasileiro era absolutamente imperativo ser católico, mesmo que se fosse também de Orixá. O sincretismo se funda neste jogo de construção de identidade. O Candomblé nasce católico quando o negro precisa ser também brasileiro.
O contexto histórico e social, isto é, o processo de modernização e as transformações pelas quais passava a sociedade na época colaboram para o sucesso da peça e do filme. Se considerarmos a sua sociedade enquanto uma realidade contraditória e em movimento, é possível romper-se com o determinismo de cunho político e econômico. Se a sociedade modela o indivíduo e determina os limites da sua ação, este, por ser agente histórico e ativo, também pode influir sobre os rumos da sociedade. Assim, a intolerância e o preconceito não são fixos e naturais, mas algo que interage com os diferentes contextos sociais. Diferentes épocas podem dificultar ou favorecer sua manifestação. E, mesmo em tempos sombrios, sempre há indivíduos cujas posturas contribuem para o questionamento e superação da intolerância, ainda que sejam minoritários e talvez não se façam ouvir.
A obra de Dias Gomes é uma contribuição fundamental para que se possa pensar as relações entre as diversas religiões e a necessidade de desenvolvermos meios e comportamentos que favoreçam a tolerância religiosa. Pois, mesmo hoje os novos cruzados semeiam os ventos da intolerância. Os tempos são outros, mas o acirramento da competição no mercado de salvação das almas termina por reproduzir as pequenas e grandes inquisições que opõem o bem ao mal. A demonização da religião considerada como concorrente ainda é um recurso muito utilizado. Na sociedade em tempos de globalização parece acirrar-se a intolerância religiosa. No tempo presente, apesar de toda a sua evolução social e tecnológica, persistem o preconceito e a intolerância expressados na obra dos anos 1960. São renitentes e revitalizados não apenas por setores da Igreja Católica, mas também por outros grupos religiosos vinculados ao neo-pentecostalismo. A demonização do outro é um recurso importante não apenas para ganhar adeptos, mas também para purgar culpas. Se a arte expressa a realidade, ela permanece atual.
E a temática sobre Intolerância Religiosa continua
O cinema baiano, tem entre seus representantes no Festival do Rio 2010, o veterano Póla Ribeiro, que trouxe seu filme “Jardim das Folhas Sagradas”. O filme conta a história de um homem que deve fundar um novo Terreiro de Candomblé, mas tem que lidar com várias formas de preconceito: sexual, racial e religioso. Segundo Póla Ribeiro, mais do que uma temática regional, o filme se construiu a partir das discussões de movimentos negros e ecologistas da Bahia e de alguns outros cantos do país. O longa é a materialização deste debate, que está ocorrendo nos principais centros urbanos do mundo, onde é forte a presença dos negros.
Em “Jardim…”, fala-se de convivência social, política e religiosa, do respeito à diversidade e da questão da sustentabilidade. Debate-se como uma religião ancestral se estruturou no Brasil após uma viagem de trágicas consequências, se enraizou em nossa cultura e hoje oferece caminhos para se relacionar com a modernidade em desenvolvimento, ao mesmo tempo que com a natureza. A meta era trabalhar acerca do mistério que envolve a cidade de Salvador e o Recôncavo baiano, falar da cultura da sua gente negra que, infelizmente, sempre foi vista e tratada com superficialidade.
A base inicial foi a leitura de um Oriki (poema, música ou reza em Yorubá) de Xangô e a intenção era quebrar um paradigma na Bahia: de que os negros não gostavam de filmes sobre negros. Póla compreendia que os negros não se sentiam representados naquelas imagens, e passou a frequentar de fato os encontros, as festas, os lugares e os seminários organizados pelo ‘povo de santo’ (os adeptos do Candomblé). Na Bahia acontecem eventos como a Jornada das Folhas, do Ferro ou do Barro e durante dois ou três dias as pessoas debatem e trocam experiências. Discutem a questão do registro da sua tradição, que tem por definição um traço oral, questões de transformação, permanência e o significado atual dos seus rituais. Debatem a questão do sincretismo, do poder, da mídia, cotas, violência e visibilidade. Tudo ao mesmo tempo agora.
Conhecia os filmes acerca do tema e suas interdições. Filmes que mostram tudo, mas ao mesmo tempo não mostram nada sobre a temática. Obras como o filme Umbandista “Amuleto de Ogum”, de Nelson Pereira dos Santos, ou o Candomblé de ‘Tenda dos Milagres”, do mesmo diretor, contribuíram para sua pesquisa e formação. Reproduziu na ficção textos do filme “Yaô”, de Geraldo Sarno, e desenvolveu um diálogo constante com “Barravento”, de Glauber Rocha, mas depois cortou esta parte do roteiro final. E finaliza: “fiz um filme coletivo porque é assim que entendo o cinema”.
Fonte: Uol Cinema
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