Adorei as Almas (conto)
Adorei as Almas
Dedico esse pequeno conto a todos os pretos velhos e pretas velhas. Seres de luz que conseguem enxergar
além de nossa mesquinharia e egocentrismo, trazendo à tona nossa essência divina.
por Fábio Vieira
Estou caminhando em um jardim de girassóis, o céu azul, pássaros cantando... tudo está em
perfeita harmonia. Não há mais dor, medo ou receio... onde estarei? Será que é isso o que chamam de
paraíso?
De repente ouço um som seco, de batidas leves e curtas, acompanhado de um aroma adocicado
que não consigo identificar, mas parece ser tabaco com algum tipo de erva. Ao fundo escuto uma
música ritmada e atabaques.
Com pés descalços, sinto toda a energia do lugar, como se eu fizesse parte da terra, do ar, da
água.
Uma voz ao longe me chama:
“- Fio, está na hora de vortá”- a voz calma e serena me pede.
Nesse momento a luz do sol se intensifica, e como acordando de um sonho, abro meus olhos
devagar.
Na minha frente, um homem está sentado em um banquinho, com um cachimbo na boca e
estalando os dedos. Percebo que também estou sentado em um banco e, sem que eu tenha controle,
lágrimas começam a brotar de meus olhos.
Não posso precisar por quanto tempo chorei, mas fui me
acalmando à medida que bebia água que alguém havia me servido.
Aos poucos fui me lembrando de onde estava, eu havia ido buscar ajuda em um terreiro de
Umbanda e diziam que naquele dia quem estava atendendo eram os pretos-velhos.
O homem tornou a falar, e embora tivesse no máximo 40 anos, sua voz soava como um velho
ancião. Parecia cansada e baixinha:
- Fio, ucê gostô do passeio? - ele disse, com um leve sorriso.
-Que lugar maravilhoso era aquele? Onde estive? - perguntei, tentando me agarrar à lembrança
que aos poucos se dissipava.
- Ucê caminhô pra dentro de seu coração, ucê viu sua alma.
Pensei por um instante em suas palavras, e de como não fizeram sentido. A minha vida até
aquele momento tinha sido uma sequência de erros, cheia de amarguras e decepções. Eu achava que
se realmente tivesse uma alma, ela estaria perdida em um pântano de sofrimentos.
O homem à minha frente, como se lesse meus pensamentos, pegou em minha mão. Nesse
momento algo estranho aconteceu. Levantei os olhos, e quem estava à minha frente não era mais um
homem branco, calvo e gordinho. Em seu lugar estava um senhor idoso, magro, negro e de barbas
brancas.
Seus olhos eram tão doces, que a mudança não me causou espanto, pelo contrário, senti uma
paz interior que nunca havia experimentado antes. Ele disse:
- Fio, o inferno que ucê vive agora está do lado de fora e não aí dentro. Foi ucê que ao longo do
tempo construiu cada tijolinho de sua vida. Com amor, com ódio, com prazer, com a dor, com as
esperanças e com as desilusões. E foi ucê também que cercô seu casuá com muros altos, e não
permitiu que ninguém se aproximasse. E depois curpô o mundo por suas desgraça.
- Não foi fio? - Perguntou-me enquanto baforava uma fumaça que tinha o mesmo aroma que eu
tinha sentido antes.
Eu não soube o que responder, ele estava certo. Esse homem me conhecia melhor que eu
mesmo.
Ele continuou:
-Esse nego véio nasceu com algemas, vivi a vida toda acorrentado, hora pelos pursos, hora pelos
carcanhá. As veiz dormia com as feridas aberta, no chão gelado e com a barriga vazia.
Sabe o que fazia o nego aguentá isso tudo? A certeza que isso acabaria, que esse sofrimento não
seria eterno.
Quando desencarnei, fui recebido nos braços de minha mãe Iemanjá, ela curou cada ferida da
minha alma e depois apercebi que cada tristeza, cada dor, cada lágrima que derramei se tornô um
grão de areia perante a grandeza e a beleza do mundo espirituar. Ucê tá vendo arguma algema no
meu purso agora fio? - Perguntou-me levantando os braços.
- Não vejo nenhuma. - Respondi.
- E no seu purso fio, tem arguma algema? - Segurou meus braços no alto.
- Também não. - Respondi meio encabulado.
- Então fio, porque ainda continua preso? Ucê é livre fio, não deixa seu medo e sua auto piedade
acorrentá ucê.
Deixa que esse jardim que ucê carrega floresça pra fora de sua alma, porque esse é ucê de
verdade.
Refleti suas palavras por um momento e compreendi o que aquele ancião tão caridoso havia me
transmitido.
- Pode ir agora fio, tô vendo que o saco de pedras que ucê entrou carregando não existe mais.
Vá em paz e que Jesus Cristo acompanhe ucê.
Levantei-me do banquinho, me sentia mais leve, quase podia flutuar. Já me dirigia à porta de
saída do terreiro quando olhei para trás, num gesto de agradecimento velado, mas para meu espanto
quem estava sentado era o homem branco e calvo que eu havia visto antes quando entrei.
Não posso explicar racionalmente tudo que vivi nesse lugar. Como se descreve por palavras o
amor incondicional?
Mas sei que estou saindo uma pessoa muito melhor do que quando entrei.
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